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OLHOS VERMELHOS 

 

Tinha os olhos castanhos claros, com a íris rodeada por uma cor cinza esmaecida; olhos muito francos, onde se podiam ler os sentimentos que possuía. Eram também marcados pelo que havia visto. Olhos estranhos esses que tinha, por causa das tais marcas. Eram pequenas cicatrizes avermelhadas, que se notavam claramente quando a luz batia sobre as retinas de certa forma, ou quando resolvia posar para alguma foto.

 

As pessoas pensavam que era o efeito da máquina ou alguma ilusão provocada pela luz, como dito. Mas não. Quem conhecia aqueles olhos há muito tempo sabia que, cada vez que algo sucedia na vida desta criatura ou que a mesma presenciava algum evento importante, surgia uma nova marquinha vermelha nas íris, quase formando um mapa, como se os fatos que via pudessem ser localizados na ordem do tempo ou dos lugares através destes riscos estranhos que iam se formando nos dois globos oculares.

 

Um dia acordou e seus olhos não possuíam mais a cor natural, as duas pupilas estavam completamente vermelhas, o que causou certo pânico na família e nos amigos. Consultou dois ou três oftalmologistas, que não souberam dizer como aquilo acontecera e nem deram um diagnóstico, bom ou ruim, sobre o fenômeno. Apenas disseram que não acharam nenhum relato igual nos livros de medicina. Também procuraram ser otimistas, alegando que, aparentemente, não se tratava de nenhuma doença ocular, parecia não ser contagioso e nem prejudicar sua visão.

 

Sim, ainda enxergava e muito bem.

 

Então voltou para casa, informou a todos sobre o que os doutores falaram e de certa forma, com o transcorrer dos dias, as pessoas próximas foram se acostumando, embora na pequena cidade em que vivia alguns ainda observassem seus olhos de maneira ressabiada; outros passaram a evitar sua companhia por crerem que havia se tornado uma aberração e, ainda outros, disseram que aquilo era coisa do Diabo.

 

Mas sabia bem porque aquilo tinha acontecido. Era porque seus olhos viam demais, mais até do que queria.

 

Alguns amigos diziam que esse era seu destino. Certos conhecidos alegavam que se tratava apenas de uma característica genética ainda não descoberta. Os demais não diziam nada, porque, afinal, não cabe a seres humanos terem todas as respostas e de mais a mais, cada um deveria era cuidar da própria vida.

 

Quanto a si, acreditava que ter estes olhos não era dom nem malefício, mas acarretava um cansaço e uma sensação de deslocamento, porque sabia que talvez mais ninguém tivesse olhos assim, que sangravam só de ver o que ocorria por aí.

 

Um dia cansou destas visões vermelhas. Consultou novamente um oftalmologista e perguntou se era possível mudar a situação. O Doutor, sem entender muito bem o que desejava, argumentou que nada tinha de errado nas vistas, que enxergava bem e devia largar daquelas preocupações.

 

Argumentou que não era o médico que vivia com aquela sina e num golpe só disse que queria realizar um transplante de olhos, que acreditava que isso mudaria tudo, as coisas que via, as marcas vermelhas e as pessoas iam deixar de olhar para si como se fosse uma aberração.

 

Queria mesmo era saber se mudando de olhos conseguiria deixar de ver as coisas como via, com essa intensidade que avermelhavam suas íris.

 

O oftalmologista disse que ainda não era possível realizar tal cirurgia, que poderia gerar cegueira permanente, bem como outros riscos a saúde. Não quis saber. Disse que era pouco seu conhecimento, mas tinha pesquisado. Que havia um ou dois oculistas que já estavam fazendo isso e que o Doutor estava em permanente contato com os colegas.

 

O argumento final? Cinco maços substanciais de dinheiro jogados com fúria desmedida sobre a mesa do médico. Economias de uma vida toda. Queria servir de cobaia. Assinava o que fosse preciso. O médico disse que se era assim não precisava de pagar, mas foi guardando três maços antes que houvesse arrependimento súbito ou tardio. O resto deveria guardar, para custear as despesas pessoais durante a estadia disse.

 

Tudo foi preparado. A data marcada. A família soube que iria viajar, mas não o porquê. Avisou que demoraria uns meses, mas mandaria sempre notícias. Que não se preocupassem que precisava mesmo era de uma mudança de ares.

 

E se foi. Rumo a um destino incerto, mas que preferia ao que estava vivendo há tantos anos.

Quando chegou a clínica assinou vários documentos, até um que não entendeu muito bem sobre o destino de seu corpo, caso a operação resultasse em óbito. Usando os meios que tinham, os médicos envolvidos conseguiram rapidamente o doador e marcaram a data do procedimento, explicando que se este fosse um sucesso, receberia alta em dois meses.

 

Então chegou o dia. Os cirurgiões prepararam a equipe e os instrumentos necessários e deram início ao procedimento, removendo os globos oculares com cuidado para não afetar os nervos ópticos. Quando o par de olhos foi retirado os profissionais examinaram aquelas cavidades vazias, buscando uma explicação para o fenômeno que acometia aquela criatura.

Um silêncio sinistro tomou conta da sala de operações.

 

Os médicos trocaram olhares nervosos entre si e suspiraram. Meu Deus, um pensou. Não havia o que fazer, o outro concluiu. Nenhum deles disse nada, não havia o que ser dito. Com um aceno de cabeça, recomeçaram suas atividades. Conectaram os nervos aos globos oculares doados. Realizaram todos os demais procedimentos necessários para os órgãos funcionarem perfeitamente e para evitar qualquer infecção operatória. Finalmente, colocaram as ataduras de proteção sobre aquelas coisas, que preferiam não tentar entender ou encontrar uma definição.

 

Por fim os cirurgiões selaram um pacto silencioso, somente possível entre pessoas que se conheciam há muito e por isso podiam se comunicar sem palavras, de nunca falarem sobre esse procedimento com outros profissionais.

 

Quanto à equipe, essa nada tinha visto tão concentrada estava em suas obrigações normais e predeterminadas durante uma cirurgia sigilosa como estas que realizavam. Os médicos sabiam que não era preciso se preocupar com as pessoas que estavam naquela sala, naquele dia fatídico.

 

Os dois meses passaram com a lenta rapidez e rotina que atinge aqueles que estão se recuperando em hospitais: cuidados pós-operatórios, para prevenir a rejeição, ingestão de doses cavalares de medicamentos; testes para verificar se os órgãos transplantados estavam respondendo ao tratamento e se havia indícios de que iriam recuperar sua função. Às vezes, os médicos achavam que não, e, no fundo, até pediam que isso ocorresse.

 

Na última semana de recuperação as gazes foram retiradas. Havia expectativa e medo entre os profissionais que cuidaram do caso. Pediram que abrisse os olhos e examinaram o fundo de cada globo ocular com uma lanterninha incomodativa. Nenhum sinal de infecção, nervos ópticos intactos e, por fim, a pergunta que não queria calar: se conseguia enxergar.

 

Explicou que estava vendo algumas sombras e conseguia distinguir quais eram de objetos e de pessoas. No resto, apenas uma claridade. Bom, os médicos argumentaram, nem sinal de marcas vermelhas, pelo menos. Quanto à recuperação total da visão, era sabido que havia risco de manter ou perder. Mas ainda havia uma semana pela frente. Era preciso aguardar.

A semana passou com a ligeireza que os esperançosos sentem quando um evento importante está para acontecer. O resultado foi positivo. Nada de íris vermelhas e a visão retornou lenta, mas totalmente. Até melhor do que antes.

 

Voltou para casa feliz, sentindo-se finalmente parte da normalidade que se espera na espécie humana. Os familiares perguntaram como aquilo tinha sido possível. Respondeu apenas que alguém indicara uma erva medicinal; embora não acreditasse usou e tinha dado certo.

 

Ninguém questionou a simplicidade da resposta.

 

Um ano após a exitosa operação, acordou tranquilamente. Tinha várias atividades a fazer com seus amigos. Seria um dia agradável. Encaminhou-se ao banheiro, abriu a torneira, lavou o rosto e se olhou no espelho.

 

Berrou.

 

Seus pais correram ao local. Bateram na porta, pediram que abrisse, perguntaram o que tinha acontecido. Mas não ouviam nenhuma resposta. Somente o choro convulsivo que vinha da peça e que redundou num novo grito, um apenas. Depois só o som perturbador de gemidos.

 

Desesperados, arrombaram a porta. Viram que estava no chão, com as mãos ensanguentadas sobre o rosto, gemendo inconsolavelmente porque tudo tinha sido em vão. Ao lado de si, em uma poça, os dois globos oculares, que tinha arrancado com os dedos, ao ver que a vermelhidão, desta vez, tinha tomado conta inteiramente de seus olhos.

 

Seus pais chamaram a ambulância. Os atendentes realizaram os primeiros socorros e recolheram o par de olhos, depositando-os em um saco com gelo cedido pela mãe que chorava desesperada diante daquela cena, fruto de uma frustração incomensurável. E levaram aquela criatura para o hospital, onde os médicos nada puderam fazer para reverter a situação. É possível colocar implantes nas órbitas, disseram. Não quero, gritou. Vedem, vedem esses buracos que nunca mais quero ver.

 

Sua vontade foi respeitada. Aprendeu as técnicas que os cegos de nascença ou não aprendem para serem autossuficientes. Não queria que outros sofressem por suas escolhas.

 

E assim passou a viver. Recuperou a paz de espírito que acreditou ser possível somente com a troca de olhos. Voltou a ser relativamente feliz. E sentiu que sua família também estava se recuperando de todo aquele fardo.

 

Dois anos transcorreram neste sonho, onde se recuperou das dores emocionais que sofrera. Estava na praça em que costuma sentar para tomar sol e onde encontrava pessoas conhecidas, queridas ou não, que riam e conversavam sobre tudo um pouco, principalmente sobre a vida alheia.

 

Ouviu um pequeno murmúrio. Levou às mãos a boca para não gritar. A ausência de olhos não permitia, a quem passasse por aquele banco, perceber o medo que estava sentindo. Então, os gemidos foram se intensificando com o passar dos minutos, até que parecia que tudo a sua volta estava cochichando ao mesmo tempo.

 

Foi quando descobriu que os gritos do mundo poderiam ser ainda mais insuportáveis do que as visões que ele produzia.

 

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